quarta-feira, 17 de maio de 2023

Registro 022

15/06/22

Sobre a felicidade


Depois de onze anos, finalmente conheci o pai de Lara. Pela janela torta do quartinho nos fundos da casa o vi de longe mexendo em papéis, concentrado sobre seu grande bigode. Queria que o velho gostasse de mim, mas apesar de toda verborragia que me é inata, teologia e arquitetura não são temas que muito me agradam e temi que ele me achasse à primeira vista um cara introvertido - o que eu não sou. Com toda simpatia e delicadeza que consigo ter bati com suavidade na porta:

Posso entrar? Sou eu, Beto, vim te conhecer…

E com toda simpatia e delicadeza que eu já ouvira falar ele disse: “Claro, entre!”, e enquanto girava a maçaneta me veio à cabeça a voz de Lara falando sobre a voz de seu pai: “barítono”. Sobre à mesa bagunçada partituras, anotações novas e velhas, livros, parafusos; na parede estudos de grego e latim; instrumentos e ferramentas por toda a sala - que pequena e mal iluminada, com seu cheiro agradável e familiar de vela com sei lá o quê, levou-me para casa, a minha própria de alguma infância distante. Conversamos sobre música, sobre filhos e sobre Lara, trocamos alguns segredos e logo depois de eu jurar algumas coisas Lara convenientemente apareceu me chamando para caminhar. Como que bêbado de verdades caminhei distraído pela fazenda ao lado de Lara, sentindo a mistura de seu próprio perfume com o próprio das plantas, conversamos por horas.

Agora aqui, depois de mais onze longos anos, refletindo, ciente de que aquele cheiro de sei lá o quê era daqueles inseticidas em espiral que não funcionam, ciente de tantos detalhes alheios de terceiros que compõe a história de Lara, a vida de Lara, que compõem minha Lara, penso ser feliz e aguardo pacientemente a morte, apenas para aristotelicamente, por uma brincadeira interna, comprovar meu pensamento. Hoje está frio, Hera veio nos visitar e pediu canja no jantar. Lara está na cozinha a me chamar, Aristóteles há de convir…


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Páginas