sexta-feira, 30 de julho de 2021

Sobre verdades imorais

Como já disse noutros contextos, a filosofia me tirou quase tudo (foi um casamento infeliz). Uma das coisas que ela levou foi o meu amor romântico e monogâmico. A filosofia é uma demônia, mas uma demônia justa que te leva coisas e deixa outras no lugar, coisas que ela julga melhores do que aquelas que afana - é uma intrometida imoral, ladra de razões, de certezas… No lugar do amor romântico e monogâmico, que eu expunha na sala, ela me deixou o amor livre - que escondo no quarto.

No quarto de Pedro, na música que fizemos, na fotografia, quem quiser ver que veja. Está na minha cara. Ao chegar em casa olho no espelho os pontos vermelhos nas pontas do meu nariz e queixo - o rubor próprio do dionisíaco! É tudo pela arte, pela vida, pelo amor.

É o que Pedro e Dedé precisam entender. Dedé cuida de mim, Pedro canta para me tocar e toca para me cantar…Dedé é minha pessoa (mesmo que não aceite), e Pedro poderia ser também (se aceitasse). Como sempre, estou cheia de amores e sozinha. Estamos todos… cheios de amor e sozinhos, somos muito humanos, somos artistas.

Sussurrando sensualmente, ao pé do ouvido da humanidade, verdades imorais - a arte, a vida e o amor.


Sobre a esposa e o bebê que não tenho

Tenho dó de Dédé, hoje mesmo ele disse “eu sou mesmo um coitado”, e é. Deve ser horrível essa sina de ser o amor da minha vida, o amor da vida de alguém como eu, o amor da vida de uma pessoa doida. Eu tenho medo de ter um filho, porque sinto que essa criança cresceria estúpida, torta e desgraçada, como eu. Hoje conversamos sobre isso e foi muito interessante. Dedé é a única pessoa mesmo que poderia supor minha resposta, eu perguntei:

- Sabe o que eu faria se engravidasse?

E ele na lata respondeu:

- Daria para o pai.

Dedé me conhece. Dedé é muito bom, muito melhor que eu. É minha esposa idolatrada, salve e salve! Mas Dedé é homem… Se fosse mulher Dedé seria ótima esposa, mas essa testosterona toda atrapalha demais. Nunca soube minhas taxas hormonais, mas sinto que tenho um vazio, uma coisa que falta, que se projeta na minha falta de fé e no meu temor à maternidade. Eu ficaria triste se engravidasse, profundamente triste. Eu choraria, eu me bateria, eu imploraria ao universo que matasse o meu bebê. Falei isso para Dedé hoje, e ele em sua infinita sabedoria sugeriu que eu registrasse essas reflexões, registrasse também a imoralidade dessas reflexões, para que eu deixasse em algum lugar (fora de mim) a vontade de matar o meu (imaginário) bebê.

Estranhamente este se tornou um texto para o bebê que eu nao tenho, primeiro texto, talvez único e último, para o bebê o que eu não tenho. Saiba, bebê. que eu te amaria. Não te quero, mas te amaria, como tudo que eu amo nessa vida. Eu seria sim uma boa mãe. Por isso mesmo não quero, dá muito trabalho ser uma boa mãe, uma boa pessoa. Não te quero por que você, que não existe, me daria muito trabalho. Mas não só, não te quero porque eu te amaria demais, e amar dá trabalho, e eu não gosto. E não só, não te quero porque você poderia ser igual a mim... parecido que fosse - seria triste.


quinta-feira, 22 de julho de 2021

Sobre ser só

O amor e o ódio que sinto se alimentam da mesma razão: ele não me quer. E dizem mesmo, sei lá quem disse, que o contrário do amor é a indiferença. Sei bem o que sinto, mesmo que sejam contraditórios os meus sentimentos, sei de todos eles. Agora, o que ele quer? Isso não sei e nunca soube. Quer que eu desapareça? Que eu me declare? Já desapareci, já me declarei, muitas vezes. Dedé me gosta, mas não me quer.

Sinto-me só no mundo que inventei, tenho muitos humanos e (não raro) nenhum. Mesmo com Dedé ao lado, não tenho ninguém, estou sozinha me afogando em saudade, tesão e esperanças infantis. Dedé é tão adulto, tão limpo, tão certo… e eu… eu sou como que desde os quinze uma adolescente suja e torta, mesmo que agora eu tenha trinta. Dedé vai me abandonar de vez um dia… e então serei verdadeiramente só, não só em teoria, mas na prática, não só no meu mundo, mas no de todos, só de tudo.


Por quanto tempo serei capaz de sustentar essa coisa de amar muitos de uma vez? não sei viver livremente, quanto mais amar. Sou toda grade, cadeia e cela, disfarçada de uma boa ideia.


terça-feira, 20 de julho de 2021

Sobre literatos

Quero um livro seu, um livro de contos e desenhos. Gostaria de lê-lo e vê-lo antes de dormir porque gosto daquela porra toda escorrendo entre as letras, da desordem figurada e literal, do seu pau. O que ele escreveria depois de ver com os próprios olhos a baba lenta e transparente que pode pingar de mim? Não é regra, mas pode acontecer. Ocorre quando estou apaixonada (o que é raríssimo) ou transo com literatos e pensadores (o que é recorrente). O que ele faria se, num momento trivial da vida (enquanto filosofa, por exemplo, com as tábuas do teto ou com os tacos do chão), descobrisse-se apaixonado? A arte faz as vezes do espelho que falta aos que racionalizam a sensibilidade e as vezes do encontro impossível dos que se amam a distância - que bom.

Quero um livro seu sobre mim, porque sou carente demais e não me enxergo. Quero uma xilogravura imensa, meus peitos no hall de entrada - para as visitas. Quero o artista sobre mim em texto e textura, prosa e peso.


quarta-feira, 14 de julho de 2021

O gosto da pobreza

Ainda hoje somos pobres querendo ser ricos, parece um carma [e ri]. Mas euzinha tenho os pés no chão. Não jogo nenhuma comida fora. Às vezes meu almoço é todo dos restos do dia anterior.

- Você faz o que?

- Quero ser rica!

Diálogo

- Não apaguei as mensagens. Pois é… não todas. Guardei algumas e de vez em quando as revisito com um misto de tristeza, saudade e revolta. Leio as palavras como quem alisa as roupas de um desaparecido. Será que Júlia lhe perdoou? Ela nunca nem me respondeu. Tão linda emoldurada em seu cabelo laranja. Sempre a imaginei nua na cama alternando o olhar entre nós dois. Oui, un ménage à trois. Pourquoi pas ? Porque não! Infelizmente ela não toparia, Júlia não sabe dividir. Ele mesmo também não aceitaria, Mario é hipócrita e frouxo. 

- Desculpe, eu estava com os fones de ouvido. Você quer ajuda pra alguma coisa? Vou fazer um café...

- A sociedade não julga o que não enxerga ou não admite. Desde que perdi a fé em deus, abracei a perspectiva de que os limites da minha loucura e da minha imoralidade acompanham as fronteiras da ignorância alheia. Se não me sabem, não não me aclamam nem condenam.

- Você prefere um chá?


O feio é bom

 - A vida me ensinou que é tremendamente errado comer gente casada, gente casada é problema na certa. A refeição em si não faz mal, às vezes até contribui! Ajuda o casal a fingir com mais veracidade que está tudo bem, ou sentir mesmo, com verdade, que está tudo bem. Afinal são tantas coisas que unem os casais, tanta coisa para além do sexo. Eu mesmo quando era casado vivia melhor com meu marido quando estava feliz com meus casos; a realidade é simplesmente uma bosta e há certo prazer em aceitar ou entender isso - que a coisa é feia mesmo e que o feio é bom, o feio é a que há, é o que somos, o que temos. Amar a feiura, as rachaduras na parede, as manchas no chão, na cara - é o que o tempo ensina. O tempo ensina também a perdoar, perdoar não, relevar, não, esquecer… Eu esqueci a dor que sentia, a culpa… e nada hoje me convence que era maldade minha lhe abraçar antes de dormir depois de ter fodido tudo e todos. Minha tristeza sempre justificou os meus pecados; é assim com todo mundo... não?

-  Beto, desculpe. Acabei cochilando... é errado comer o quê? Deixa pra lá essa coisa de regime, amanhã é sábado!


Cabeça bonita

Escrevo quando estou agoniada, estando assim tenho vontade de escrever todos os dias. O que me agonia é aquele mocinho. A voz do Wagner toda hora ecoa na minha cabeça “como você deixa um menino de 20 e poucos anos te dar um fora? Amiga, acorde!”. Também me pergunto, como?

Coitado, tornou-se um dos meus personagens, na vida e na literatura. Ele é um menino real que não quer ser um personagem, um capricorniano. Não sei bem o que isso significa, não significa nada. Mas dizem coisas por aí... se forem verdades, as estrelas foram mais benévolas com ele do que comigo.

Recebi um convite para não sei o quê numa chácara, aceitei. Não podia aceitar, não deveria, mas aceitei. O celular ascendeu: “tá pronta?”, dizia a mensagem, ou dizia outra coisa, não lembro. Combinamos de nos encontrar no bar. Chegaram, abri a porta do carro, meio embaraçados trocamos cumprimentos e me acomodei no banco de trás. Acho que escutavam Noel Rosa, ou outro sambista, também não lembro. Eles cantavam, estavam felizes e eram jovens. Falta muito para chegarmos à Bauru? Pensei comigo mesma, resolvi perguntar: “Gen...”, não tive tempo de concluir, “Chegamos!”, ele disse.

- Não íamos para Bauru? Estamos viajando há vinte minutos no máximo!

- Bauru?

Realmente, não sei de onde tirei aquela informação, eu invento coisas e acredito nelas. Um aniversariante estava comemorando a chegada dos 21 anos e o outro dos 22. Cilada Bino! Disse uma voz do além. Por que eu estava ali? Por que aceitei aquele convite? Eu tinha tanta coisa para fazer, e especialmente naquele dia estava mal do estômago. O que fazer quando você tem um milhão de compromissos e dores estomacais? Ir para uma festa de adolescentes! Claro. Fui por causa do mocinho, estava meio apaixonada, estou, não sei. Gosto dele como de vírgulas, não me controlo, não sei usar, ponho vírgulas onde não deveria.

Música animada, mas ruim. Bebíamos vodca misturada com alguma coisa com gosto de leite fermentado. Estávamos como que numa festa infantil, não faltaram nem os pais. Um casal amável com belos sorrisos veio me dar um oi, “Oi, meu nome é Lorena”, respondi. “Você é a Lorena?” disse o velho espantado. Disfarçada e delicadamente ele tentou contornar “Meu filho falou de você...”. Não soube o que fazer, fingi-me de doida, falei do trabalho, não lembro. O que estou fazendo aqui? Era meu único pensamento. Único não, na minha cabeça dançavam três pensamentos: Vou comer o mocinho? Quando vou comer o mocinho? O que estou fazendo aqui?

O céu escureceu, a temperatura baixou, os meninos pularam na água e, mais tarde, molhados e arrependidos ficaram tremendo pelos cantos, esquentando-se uns nos outros como pintinhos. Eram todos meninos bons, não todos, não sei, mas pareciam meninos bons. Lembro sempre do Wagner dizendo “Que sorte, não? Encontramos dois meninos bons!”, quando no balanço da "Torts" voltávamos para casa depois daquela festa em setembro de... Meu deus! Estamos em junho! Como pude fingir por tanto tempo que eu me importava tão pouco? Ah, sim! Sou casada.

- Preciso de roupas secas, estou todo molhado! Vamos até o carro? Estão no bagageiro.

- Você deve estar com frio...

Conversamos, transamos, conversamos e transamos de novo. Como nos entendemos bem no banco traseiro daquele carro! Naquele espaço pequeno e sem ar eu encontro mais vida que em todo o meu quintal. Que horror... Que fiz com minha vida nos últimos tempos? Fodi, fodi coisas, planos e pessoas. Por que não escrevi sobre essas pessoas? Comi umas pessoas aleatórias. Num ménage sinistro (que merece um texto à parte) eu comi uma amiga e um cara desconhecido, primeiro numa rotatória e depois na praia, uma puta transexual nos salvou de um possível assalto, aquilo foi uma noite digna! Comi um professor rechonchudo que não transa mal, professor rechonchudo... coitado, ele é bem mais que isso e merece também algumas linhas, algumas páginas talvez. Comi também um casal, a moça linda e o cara grudento me entretiveram por algumas semanas. Não escrevi até agora sobre eles porque não me importei o suficiente. Escrevo sobre tudo que me importa.

Já em clima de fim nos sentamos em roda no chão da varanda. Nunca me veio à mente uma boa maneira de retratar aquela cena, a disposição dos corpos, o cruzamento das conversas. Sua cabeça bonita estava exatamente entre mim e o moço que me contava empolgado uma coisa qualquer. Eu fingia ouvir as palavras do rapaz enquanto na verdade refletia sobre o peso do menino que se apoiava em mim e o cheiro bom que vinha de seu moletom; ria e concordava com sei lá o quê enquanto em segredo pensava na textura dos fios de seu cabelo que eu encaracolava nos dedos... Nos despedimos com estranheza naquela noite, depois de tudo que conversamos ele deve ter entendido alguma coisa da qual não gostou.

Quando eu tiver espaço, terá ele tempo? Essa história se arrasta há anos e em breve se esfrangalhará nas pedras do caminho, como tudo que se rasteja quando deveria andar de pé.

Carta

Lembro perfeitamente daquela noite, dos vidros embaçados, do seu olhar de decepção e surpresa quando confessei ser casada, transamos tão bem naquele carro… nunca imaginei que alguns anos depois estaria aqui, mordiscando um ciúme estranho e alimentado uma paixão meio manca. Como cobrar quem não nos deve nada? Não fizemos nenhum acordo, por isso preferimos escrever no conforto de nossas escrivaninhas ao invés de correr pela rua declarando aos berros que nos gostamos o suficiente.

Entre confissões mais ou menos falsas lhe contei coisas profundas. Desnecessariamente expus meus maiores vazios, por que fiz isso? Agora ele os rumina e escreve, como todo literato. Foi assustador me enxergar em suas linhas, ver-me por outra perspectiva. Senti pela primeira vez o que sentem todos sobre os quais escrevo – um misto de alegria e tristeza, orgulho e vergonha, senti-me invadida, mas também percebida, estetizada e benquista.

Escreve tão bem quanto transa, sabe romantizar o cheiro ruim da vida, é um poeta. Não é todo literatura, mas será um dia – ele ainda é jovem. O que me agonia é o fato de que não estarei lá para ver suas ideias e pernas engrossarem. Gosto da infantilidade de suas coxas. Será que um dia ele deixará de ser um menino gostoso e se tornará um homem digno e chato?

Nunca disse a ele que gostaria de assistir em sua companhia ao mar engolir o mundo, mas fico feliz que tenha tido a capacidade de captar esse meu pensamento. Vontades são como borboletas, quando saem voando não voltam a pousar em nossas mãos.

Deveria ter lhe dito mais verdades. As palavras não mentem, mas espantam borboletas e por isso as evito quando em determinadas circunstâncias. Não sou poema nem literatura, sou apenas um ser humano excitado, sou toda vontade, inteira falta. Quero aquele menino. Está vendo? Uma borboleta escapou… Que escapem todas! Quero lambê-lo, quero escutá-lo, quero saber de onde veio e se fugiria comigo, quero chupá-lo de manhã e morder sua bunda, quero que nos encontremos sozinhos naquele bendito bar.

Como não amaria alguém com quem tenho um caso literário?

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Texto publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto em 2020:

http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/  

Sobre o descanso

É assim mesmo, acumulamos coisas, reais e de outra ordem. Dessas últimas a tristeza é a que mais ocupa espaço quando se está com a alma abarrotada. Tristeza é como um móvel enorme, quebrado e que não se pode consertar, um trambolho que não se pode jogar fora nem doar. Que fazer senão deixá-la num canto e de tempos em tempos limpá-la da poeira? Nada.

Dentre meus móveis sentimentais prezo sobretudo a felicidade na qual me deito como num perfeito divã. Pouco importa os detalhes, as explicações físicas e metafísicas, estéticas, políticas – deitar o espírito em algum lugar é o que importa. Deitei-me numa conversa dias atrás, numa conversa com meu pai. Preciso dizer três coisas, ele disse:

– Oro por você todos os dias, normalmente ao acordar. Se eu desaparecer ou morrer, está tudo bem entre nós. Há um lugar seu em minha casa, para o qual pode ir, partir e retornar.

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Texto escrito em 2018, publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto em 2020:

http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/  

Sobre a vida

Preciso de melhores perguntas, de um terapeuta talvez. “Por que você não muda de vida?” e “você está feliz?” não são as questões certas. Não sei quais são, gostaria de ajuda. Mas todos parecem como eu, ou piores! Estamos perdidos, cansados, estamos tristes também muitas vezes. É difícil adequar o personagem: “Tá feio! Tá burro. Tá chato. Compassivo demais, de menos. Sarcástico! Bobo. Sombrio! Excessivamente alegre…”. Quanta merda temos de aguentar.

O teatro é sem ensaio, cada um cria suas falas e o público pode sempre intervir. “Mas que cena horrorosa!” – podem dizer. Ao fim do dia podemos voltar para casa e chorar em nossas camas antes de dormir, e não é tão ruim quanto parece. Na verdade é. Existem muitos remédios caseiros e quase nenhum funciona. Amor ajuda, mas é paliativo,

como escrever…

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Texto escrito em 2020, publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto:

http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/ 

Sobre o tempo

Hoje me dei conta de que não sei datar as coisas, e como tenho uma memória que não se pode chamar nem de mediana, minha vida se embaralha em meus pensamentos como um romance qualquer com as páginas fora de ordem. Viro a capa e estou no fim do livro; nada de introdução, ela mesma está lá na última página, como um final ao contrário que estranhamente não sinto vontade de espiar. No agora que se confunde ao fim da história me sinto como o personagem daquele livro mal falado do Chico, Leite Derramado, que senil ora conversa com seu pai há muito falecido, ora com sua filha pequena que na verdade é tão idosa quanto ele. Apesar das críticas, amo a vida enredada tal como Chico a descreve ali. Para além de tediosas são páginas valiosas, é livro em forma de gente e vice versa. Mas voltando à questão da datação, importa mais o início ou o fim das coisas, dos sentimentos e das histórias? Ambos importam tanto quanto o meio que os une? Há anos comecei a pintar um quadro, pendurei-o na parede depois que cansei de vê-lo empoeirando junto às telas em branco. Está sem data e já não me lembro quando fiz as primeiras linhas, ao terminá-lo não saberei quanto tempo ficou inacabado e seja lá qual for o ano indicado pelo menos a mim parecerá mentira. O tempo é um embuste, as datas cobrem histórias como cobertores assim como mentiras as verdades, e fica ali um volume indecifrável e indisfarçável.

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Texto escrito em 2020, publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto:
http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/ 

Teatro eu

Posso falar por horas sobre o que acho das coisas, mas não sobre as coisas em si. Porque das coisas não entendo. Só sei de mim, dos meus juízos, das minhas vontades, meus arrependimentos, minhas vitórias. Só sei o que acho dessa coisa mim, dessa coisa eu. E sabe que não ligo? Nunca liguei… Mas disfarço a satisfação de ser eu, pois sou dramática e aceito bem isso, até gosto. Chorar, chorar… se me vissem quando sozinha… uma atriz! No teatro de mim mesma, dançando, dançando... Caio no chão e escondo o rosto entre as mãos. Meus braços aplaudem minhas palavras e trilhas sonoras... eu plateia, eu palco, eu enredo, diretora, diretriz.

Mas eu escárnio também, eu chacota, eu tristeza, eu tragédia…

Acho assim.

Sobre amar e morrer

Queria amar todos os meus amores de uma vez. Mas não há corpo que aguente, nem espaço, nem tempo. Preciso então amar um de cada vez. Alguns mais, outros menos, amores cotidianos e eventuais, anuais, os de decênios e os momentâneos, os instantâneos… esses instantâneos têm algo a ver com os cheiros. Somos animais e é tão bom ser um animal humano, racionalizar a sensibilidade e seus objetos - que delícia!  O chato é nos saber finitos... grande tristeza na verdade. Mas o que não tem remédio, remediado está.

Sei que tudo passa e por isso amo como quem se despede. Finjo tranquilidade. Mas às vezes, por descuido ou acaso, esqueço de aceitar que tudo acaba… e das minhas profundezas emerge aquele desejo mórbido de eternidade.


terça-feira, 13 de julho de 2021

Sobre os amores II

Odeio escrever assim, errando o português, misturando a segunda e a terceira pessoa na mesma frase, confundindo os pronomes e o lugar das vírgulas… Não sei viver nem escrever, mas insisto nessas atividades como se fossem obrigatórias - não posso me matar, nem abandonar as palavras.

Dedé, que agora me conhece melhor, mesmo assim não me abandonou. Não me abandonou ainda? Pergunto à vida - que nada responde. Preciso sempre escrever Dedé, pensar Dedé, amar Dedé… minha sina, minha boa sorte! Meu coração é inteiro seu, mas só. E todos sabem, inclusive ele. O resto do meu corpo inteiro, incluindo isso que chamam de espírito, é do mundo.

Sou da vida, não puta, e nada tenho contra as putas, a questão é que não cobro nada mais que atenção dos muitos amores que tenho. Aliás, nem atenção pareço cobrar, pois um dos meus amores pouco se importa comigo, o maior de todos não retribui meus abraços, e os cultivo mesmo assim. Meus amores são meus apenas, assim como os amores de quem me ama, são deles, delas. Cada um com os seus problemas, cada um com os seus amores.

Ontem, ao me despedir de um dos meus amores, mandei: “Um abraço! Um beijo! Não sei… Um beijo existencial!”. E recebi de volta a pergunta: “Um beijo existencial?” - e fomos dormir. Explico aqui. Sim, um beijo existencial. Considerando as razões universais (inventadas) que nos unem, que nos movem, e considerando também a ligação entre os amores e os problemas, os beijos e os amores, há fundamento sim no termo “beijo existencial”. Foi o que lhe desejei, na falha do conceito mesmo, no buraco da ideia - um beijo existencial. Não sei quem ele é na verdade, mas amo tanto… Por pura arte mesmo! Pelo prazer estético. Amo porque pensando nele me brotam melodias e letras sem fim, pensando nele me surgem desejos inesperados, belos e destruidores como tempestades. É tudo pela arte, pelo mundo, porque eu mesma não valho nada… Tudo vale nada se não virar arte. E isso tem a ver com o seu questionamento que iniciou o fim da conversa: “Você tem um propósito? Você busca um propósito? Ou não acredita em nada disso?”. Achei curiosa a questão. Hoje a pergunta sobre o sentido da vida me parece tão invasiva quanto as sobre orientação sexual… Eu não entendo a vida, e não acho que são altas as chances de haver uma inteligência controlando o universo. Eu acredito na sorte, no azar, no acaso… e como podem me achar má ou boba por isso, prefiro reservar aos íntimos essa perspectiva.

Como sempre tento explicar a Dedé: quase nada faz sentido. Somos nós, em nossa admirável imaginação, que criamos razões para as coisas, para os outros, para nós mesmos. E é aí que se mostram os humanos! E como são em sua maioria tremendamente previsíveis, óbvios, caretas... O futuro, ou a história (tanto faz), se alimenta de outro tipo de gente - dos apaixonados. O futuro se alimenta dos apaixonados por alguma coisa, dos humanos que vão para o espaço, dos artistas, dos que dão aula, dos que têm filhos, dos que escrevem livros, dos que cuidam de algo ou alguém, dos que maltratam também, dos que têm raiva, dos que atiram nos passageiros, dos que se matam. A história é feita pelos que dormem em agonia, não pelos que gozam o sono dos justos. Os justos fazem o que devem fazer, pensam o que devem pensar; e se tudo fosse assim, justo, o universo seria o mesmo desde sempre, o que não faria sentido.  O caos é necessário… não em tudo, não sempre. O caos é uma pimenta existencial. 

Acredito no corpo, acredito na arte, e me limito a saber grandiosas essas coisas, aceitando que não as entendo. Espero que Dedé não me abandone nunca; que um dia chegue a compartilhar comigo seus outros amores; espero nunca mais magoá-lo. Tudo que quero é me livrar dos acordos sociais que eventualmente podem limitar essas coisas que prezo: o corpo e a arte. Porque amar e dançar é o que importa. Se tudo der certo, ao fim da vida terei uma coleção de amores e obras de arte; se der errado serei uma velha sozinha, maluca e provavelmente triste. Sei que não há nada de errado em ser uma velha sozinha, pinel e triste - é normal até. Por isso insisto em viver e escrever, errado mesmo.

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