quarta-feira, 14 de julho de 2021

Carta

Lembro perfeitamente daquela noite, dos vidros embaçados, do seu olhar de decepção e surpresa quando confessei ser casada, transamos tão bem naquele carro… nunca imaginei que alguns anos depois estaria aqui, mordiscando um ciúme estranho e alimentado uma paixão meio manca. Como cobrar quem não nos deve nada? Não fizemos nenhum acordo, por isso preferimos escrever no conforto de nossas escrivaninhas ao invés de correr pela rua declarando aos berros que nos gostamos o suficiente.

Entre confissões mais ou menos falsas lhe contei coisas profundas. Desnecessariamente expus meus maiores vazios, por que fiz isso? Agora ele os rumina e escreve, como todo literato. Foi assustador me enxergar em suas linhas, ver-me por outra perspectiva. Senti pela primeira vez o que sentem todos sobre os quais escrevo – um misto de alegria e tristeza, orgulho e vergonha, senti-me invadida, mas também percebida, estetizada e benquista.

Escreve tão bem quanto transa, sabe romantizar o cheiro ruim da vida, é um poeta. Não é todo literatura, mas será um dia – ele ainda é jovem. O que me agonia é o fato de que não estarei lá para ver suas ideias e pernas engrossarem. Gosto da infantilidade de suas coxas. Será que um dia ele deixará de ser um menino gostoso e se tornará um homem digno e chato?

Nunca disse a ele que gostaria de assistir em sua companhia ao mar engolir o mundo, mas fico feliz que tenha tido a capacidade de captar esse meu pensamento. Vontades são como borboletas, quando saem voando não voltam a pousar em nossas mãos.

Deveria ter lhe dito mais verdades. As palavras não mentem, mas espantam borboletas e por isso as evito quando em determinadas circunstâncias. Não sou poema nem literatura, sou apenas um ser humano excitado, sou toda vontade, inteira falta. Quero aquele menino. Está vendo? Uma borboleta escapou… Que escapem todas! Quero lambê-lo, quero escutá-lo, quero saber de onde veio e se fugiria comigo, quero chupá-lo de manhã e morder sua bunda, quero que nos encontremos sozinhos naquele bendito bar.

Como não amaria alguém com quem tenho um caso literário?

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Texto publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto em 2020:

http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/  

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