quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sobre o tempo

Hoje me dei conta de que não sei datar as coisas, e como tenho uma memória que não se pode chamar nem de mediana, minha vida se embaralha em meus pensamentos como um romance qualquer com as páginas fora de ordem. Viro a capa e estou no fim do livro; nada de introdução, ela mesma está lá na última página, como um final ao contrário que estranhamente não sinto vontade de espiar. No agora que se confunde ao fim da história me sinto como o personagem daquele livro mal falado do Chico, Leite Derramado, que senil ora conversa com seu pai há muito falecido, ora com sua filha pequena que na verdade é tão idosa quanto ele. Apesar das críticas, amo a vida enredada tal como Chico a descreve ali. Para além de tediosas são páginas valiosas, é livro em forma de gente e vice versa. Mas voltando à questão da datação, importa mais o início ou o fim das coisas, dos sentimentos e das histórias? Ambos importam tanto quanto o meio que os une? Há anos comecei a pintar um quadro, pendurei-o na parede depois que cansei de vê-lo empoeirando junto às telas em branco. Está sem data e já não me lembro quando fiz as primeiras linhas, ao terminá-lo não saberei quanto tempo ficou inacabado e seja lá qual for o ano indicado pelo menos a mim parecerá mentira. O tempo é um embuste, as datas cobrem histórias como cobertores assim como mentiras as verdades, e fica ali um volume indecifrável e indisfarçável.

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Texto escrito em 2020, publicado pela primeira vez na Ruído Manifesto:
http://ruidomanifesto.org/quatro-textos-de-selmy-menezes/ 

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