quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O gosto de um pensamento.


Desde pequena me acontece algo esquisito na hora de dormir. Em forma de imagens, pensamentos me vêm à mente, de tal maneira estranha, que parecem ocupar-me todo o crânio: como a imagem de uma bola gigante que de tão grande se torna impensável e acaba alcançando (por trás) os ossos da testa; ou a imagem de um menino que como num desenho animado vai ficando cada vez mais magro até sumir de vez num vazio escuro e infinito – que deixa oco o raciocínio. Coçando a cabeça afugento tais pensamentos, que somem numa fração de segundo, como galinhas assustadas.

Quem dera se todos os pensamentos perturbadores que tenho pudessem sumir assim tão facilmente. Uma bola imaginária que infla até me explodir a cuca é ruim, sem dúvida. Mas nada se compara ao que sinto quando penso em coisas abstratas, que pela falta de imagem me deixam mais que atulhada ou oca, deixam-me perdida – como o olhar de uma pessoa profundamente triste. Sem contornos, a inimaginável liberdade me atormenta até o sangue. Onde está você, beleza, seu lindo rosto? Onde estão suas mãos, D. Justiça? Apareçam! E eu vasculho cada canto do meu ser à procura dessas ideias, arrasto teorias como se fossem móveis, junto palavras como quem varre folhas, frases passam como pássaros, e no fim não resta quase nada – como uma sensação.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O gosto da hipocrisia


Como são inspiradores esses documentários sobre gente fodida. A panela aberta no chão de terra batida, a comida fedida disputada pelo menino e o cão, a moça de 23 anos com cara de 64, os filhos pendurados, jogados, ah... Quanta inspiração! Melhor ainda é quando mostram a África, aquelas crianças barrigudas e sujas esperando por ajuda. Gosto mesmo é de ver tristeza, prédio caindo, gente caindo, morrendo, morrendo de fome, de frio, de bala perdida, de bala encomendada. Gosto de ver menina vendida, comprada, estuprada. E as pessoas sem membros que dão palestras? Aí sim, não há nada mais motivador.

Desligo a televisão me sentindo inspirado, motivado, vou à luta! Lutar pelo que mesmo? Ah! O bem, lutar pelo bem! Enquanto me olho no espelho vejo um homem de sorte, “poderia ser eu um daqueles fodidos” – penso. Quanta sorte! Na verdade, em meio a tanta sorte nem me lembro de mais nada. Vou trabalhar, porque deus ajuda quem cedo madruga e não àqueles que são vagabundos.

A inspiração passou, pois só há merda no caminho até o trabalho. Está tudo fedendo, todos estão suando, e esses mendigos nas calçadas? Estão mesmo cagando no chão? Que nojo! Que nojo desse mendigo, dessa criança me pedindo dinheiro. Tem muito mendigo e bosta, que nojo! Cheguei ao escritório, que sorte! Nenhum pobre tocou em mim com suas mãozinhas sujas; mas o seguro morreu de velho e por isso convém me lavar bem. Fui educado para ser limpinho – sorte!

Fim de tarde, “hora feliz” com os amigos, bebo e retorno para casa no meu carro que eu adoro. No conforto da minha poltrona, ligo a televisão. É bom se informar, pois quem tem boca vai à Roma, vaia Roma, faz o que mesmo? Enfim, informação, informação, eu adoro o conhecimento... Está passando um documentário, que sorte! Gente fodida, que inspiração!

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Tristeza apaixonada


A felicidade dança a poucas quadras dos corações infelizes, e por isso estar triste é como estar apaixonado.

Uma dor e uma alegria acenam de longe, por trás das garrafas de vidro. Lançam-nos olhares insinuantes enquanto se beijam como moças safadas e bêbadas. Que fazer senão olhá-las de volta? Enquanto falam sem som, as línguas nos chamam. Para onde? Para o sobrado ao fim da rua, lugar vazio frequentado por ninguém – desejo.

Nos cantos aconchegantes de nossa solitude o escuro nos cobre de calma. Aqui as moças se encontram e se despem malucas como se lhes pinicassem as roupas. Não há espaço mais seguro e por isso aqui também nos comemos como um pedaço de carne, como um talo de couve, como qualquer coisa resistente que nos exige os dentes. Sou assim: pérfida. Corto-te como comida, e mastigo e engulo e esqueço.

Sou má, talvez, e não ligo. Na verdade nem entendo. Haveria uma forma de ser menos cruel? Não. Toda felicidade é assim: como bruxaria, mistério, feitiço ou milagre. Assusta os despreocupados. Preocupe-se! Diz a felicidade.

O gosto da falta

Tive uma crise. Tranquei-me no banheiro e chorei compulsivamente durante não sei quanto tempo, e não lembro a última vez que me senti assim, tão frágil e vulnerável. Quis ver meus pais, pensei em minha mãe e chorei, chorei, chorei...sentada na tampa do vaso sanitário, olhando embaçadamente os azulejos da parede. Cansei de chorar, mas nenhum comando racional foi recebido pelos meus olhos e toda e qualquer imagem que me surgia se transformava em sofrimento na velocidade da luz. Resolvi tomar um banho, mas simplesmente o mundo ali era tristeza, saudade e frustração. A água quente fez as vezes dos abraços que não tenho, e não poder distinguir minhas lágrimas das gotas d'água fez do momento algo menos ruim.

O mundo às vezes parece mesmo um mar de tristeza, só mar, sem continente nem ilha, sem barco ou companhia. Ai nos trancamos no banheiro, choramos por nossos pais, nossos filhos; lustramos nossas saudades (no plural errado mesmo), uma por uma; consolamos nossos sonhos, um por um, e acalmamos nossas frustrações como se fossem crianças magoadas. "É preciso ser mais forte", falo para o espelho - e nada ouço de volta. 

Quando rever meus pais vou abraça-los com força, é nisso que penso. Entendi que nunca mais vou voltar para casa, que não há casa no mundo que seja minha, e é por isso que me tranco no banheiro mais próximo quando sinto essa saudade estranha. Não tenho para onde voltar e isso me perturba. Deus não sabe o que faz e, como criança, esconde-se.

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